[Conto] "Êxtase (ou Felicidade)" de Katherine Mansfield
Katherine Mansfield nasceu em 14 de outubro de 1888 na Nova Zelândia, e faleceu em 1923 aos 34 anos de tuberculose. Ela era filha de pais ingleses, e por isso, mudou-se para Londres em sua juventude. Ela tinha uma vida boêmia, com muitos relacionamentos passageiros com homens e mulheres. Fora casada uma vez, por poucas semanas, e logo se divorciou.
Ainda em vida, Katherine fez nome por conta de seus contos belíssimos. Tanto que Virginia Woolf declarou os textos de Mansfield foram os únicos que ela invejara. Dentre as obras de Katherine Mansfield mais famosas, encontra-se o conto "Bliss" que fora traduzido como "Êxtase" por Mônica Maia na edição lançada pela Record chamada "15 contos escolhidos de Katherine Mansfield", cuja seleção de contos foi feita por Flora Pinheiro. Porém ele também ser encontrado com a tradução de "Felicidade" em outras edições.
Este conto que é um dos mais famosos e admirados da autora foi escrito em 1918 e nos conta sobre Bertha que está vivendo um êxtase ou felicidade inexplicável naquele dia. Uma felicidade que transborda como ela mesma diz, no seguinte trecho:
Ah, por que ela sentia tanta ternura em relação ao mundo todo esta noite? Tudo estava bom - e correto. Tudo o que acontecia parecia preencher novamente sua taça transbordante de êxtase."
Superficialmente, o conto parece se tratar de apenas isso. Uma mulher transbordando de felicidade que dará um jantar aos amigos ao anoitecer e que após o jantar terá um revelação chocante sobre determinadas pessoas que frequentaram sua mesa. Contudo, o romance consegue se aprofundar e trazer muito mais em sua entrelinha.
Bertha é então, à primeira vista, uma mulher que trasborda felicidade por um motivo que nem mesmo ela conhece, como nos é dito ao início da trama. Ela parece tentar arranjar um motivo para justificar sua felicidade argumentando que tem uma vida perfeita: um bebê lindo, um marido bem-sucedido, amigos cultos e elegantes, viagens ao exterior, nenhuma preocupação financeira, uma casa satisfatória com um belo jardim, empregados, enfim tudo que poderia fazer alguém feliz, certo? Bem, para mim, esse foi o primeiro "deslize" da protagonista, pois ela parece citar tudo que faz parte de um padrão de felicidade imposto pela sociedade - da época e ainda nos dias de hoje. Isso me fez questionar, estaria Bertha mentindo para si mesma? Estaria ela tentando se convencer da própria felicidade? E o porquê disto?
Por que ter um corpo se é preciso mantê-lo fechado em um estojo como um raro, um raríssimo violino?"
"E com essas últimas palavras, algo estranho e quase horripilante passou pela mente de Bertha. E esse algo cego e sorridente sussurrou: "Essas pessoas vão embora logo. A casa ficará silenciosa, silenciosa. As luzes vão se apagar. E você e ele (o marido) ficarão sozinhos no quarto escuro - a cama quente..." Ela se levantou rápido da cadeira e correu ao piano.
- Que pena que ninguém toque! - ela disse. - Que pena que ninguém toque.
Pela primeira vez na vida, Bertha Young desejou o marido."
Quando Bertha se sente um violino raríssimo que não pode ser tocado, quando ela pensa na cama quente com seu marido ao lado e logo em seguida ela exclama "que pena que ninguém toque", e quando se pensa que ela é uma mulher casada e com um filho que pela primeira vez desejou o marido. Com isso, eu concluí que ela é uma mulher sexualmente frustrada, que a relação com o marido dela não é tão maravilhosa assim e que sua vida não é tão perfeita quanto ela afirma.
Com relação a sexualidade de Bertha, há dois outros pontos a se analisar no texto. O primeiro é simbólico e diz respeito a árvore no jardim que ela descreve. Em um determinado momento, ainda durante o dia e bem antes da chegada dos amigos para o jantar, ela olha pela janela e admira seu jardim. E, em especial, uma Pereira que está especialmente bela e da qual muitas flores desabrocharam. Seria este um símbolo para descrever algo novo nascendo em Bertha? Um desejo sexual aflorando, talvez?
Entretanto a mais um ponto a ser destacado neste conto que trata-se de um outro personagem, alguém que Bertha parece admirar, que é a Srta. Fulton. Durante toda a narrativa, ela faz muitos elogios a Srta. Fulton, e diz coisas como:
Elas haviam se conhecido no clube e Bertha caíra de amores por ela, já que sempre caía de amores por mulheres bonitas que tinham algo de estranho a respeito de si. "
Todos os elogios, admiração e esse interesse um tanto incomum de Bertha pela Srta. Fulton me fez pensar se todo esse êxtase que ela sente não está na verdade relacionado a esta mulher misteriosa que ela admira. Que essa admiração na verdade trata-se uma paixão secreta de Bertha pela tal senhorita, tão secreta que ela mesma não consegue admitir. Afinal, é muito comum nos sentirmos felizes quando estamos apaixonados, e em um êxtase especial quando sabemos que logo encontraremos a pessoa amada - pois Srta. Fulton é umas das amigas convidadas ao jantar. Contudo, concluí que Bertha é uma mulher carente e confusa com relação sua sexualidade.
Bem, claro que o conto e sua análise não acaba aí. Poderíamos também falar do marido e algumas de suas falas e atitudes durante a narrativa. O final traz uma reviravolta que poderia explorar mais discussões, mas vou deixar tudo isso passar por conta de: primeiro, não quero ser responsável por spoilers e estragar a leitura de alguém e segundo, quero que leiam esse conto e deixá-los assim curiosos. Foi uma leitura que valeu muito a pena e me fez pensar em como a felicidade é efêmera, como uma flor que desabrocha e murcha de um dia para outro, a felicidade pode escorrer por nossos dedos de uma hora para outra.
Título: Êxtase (ou Felicidade)
Título original: Bliss
Autora: Katherine Mansfield
Editora: Record
Ano: 2016
Páginas: 272
Abraços,
Daniela Tiemi.
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